segunda-feira, 3 de junho de 2013

Lisbon Revisited (1923) - Modernismo - Álvaro de Campos

LISBON REVISITED (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



                                                                 Fernando Pessoa. Obra poética R. de Janeiro. Nova Aguiar 1986.


Modernismo - A poesia de Fernando Pessoa


Capa do 1º exemplar da revista Orpheu
1º Tempo Modernista em Portugal


Nota importante: Observe que do ponto de vista formal, características modernistas estão presentes no poema: versos livres de estrofes heterogêneas e de uma linguagem coloquial, próxima da fala.

Desde a primeira estrofe, o sujeito poético imprime um tom exasperado, irritado, ao seu discurso, que se caracteriza fundamentalmente pela negação: as conclusões, as estéticas, a moral , a metafísica, os sistemas completos das ciências, das artes e da civilização moderna, a verdade. O verso – Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!), mostra com maior clareza a postura irônica do sujeito poético perante os valores por ele negados.

A modernidade caracteriza-se pela fragmentação do ser humano – a perda de sentimento de “ser inteiro”, advinda da relativização das certezas, da multiplicidade de opções, da falta de parâmetros para a escolha do que fazer, do melhor caminho a seguir. Na sexta estrofe o sujeito poético se autodefine como um técnico e, ao mesmo tempo, como um “doido”. Percebemos a cisão entre racionalidade, técnica e irracionalidade e loucura. Nesse sentido, ele exemplifica a fragmentação do homem moderno. A ironia está presente quanto ao modo de vida burguês, com suas instituições, comportamentos rotineiros, como pagar impostos, o apego a futilidades, o seu desajustamento em relação ao mundo em que vive. Observe no verso: Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?.

O sujeito poético também se apóia na morte e na solidão para renegar esses valores do mundo, revelando sua marginalidade, seu desajustamento em relação a vida.

Pelo nervosismo e perturbação do sujeito poético, podemos considerar neurótica sua postura perante o mundo e as pessoas, partindo da leitura da oitava e nona estrofes, pois nelas o sujeito poético expressa o máximo da exasperação perante as pressões para ajustar, compactuar com valores do mundo moderno.

Comentário


Fernando Pessoa
Leitura complementar:
Biografia de Fernando Pessoa
Biografia de Álvaro de Campos
Biografia de Alberto Caeiro
Álvaro de Campos não é um poeta de “carne e osso”, mas um heterônimo - um “outro” eu poético – de Fernando Pessoa, o mais importante representante do Modernismo português e um dos grandes poetas do século XX.

Fernando Pessoa criou vários heterônimos. Além de Álvaro de Campos, os mais conhecidos são Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

O fenômeno da heteronímia – a capacidade de multiplicar-se, de desdobrar-se em poetas imaginários – constitui a característica mais destacada de Fernando Pessoa, esse “multiplicador de eus” que tomamos como ponto de partida para estudar o movimento modernista português.

Como você viu no poema analisado, Álvaro de Campos é o heterônimo futurista de Fernando Pessoa. Ele encarna o homem moderno, com suas neuroses e obsessões, sua consciência de ser fragmentado e de viver num mundo cujos valores abomina.

Para conhecer o universo político-cultural português do início do século, compreender como nasceu e como se desenvolveu o Modernismo no país, quais eram seus principais elementos, quem eram e o que produziram seus mais importantes representantes – entre os quais Fernando Pessoa, poeta que simboliza e sintetiza algumas das questões fundamentais do mundo moderno, em termos artísticos e filosófico, leia: Revista Orpheu | 1º Tempo Modernista Português - Geração Orpheu



Análise do poema

É frequente dizer-se que: “Quanto mais se sobe mais alta será a queda”, pois bem, em Álvaro de Campos podemos observar nitidamente essa queda drástica que ocorre na terceira fase da sua obra. Em clima de loucura excessiva e visão exageradamente figurada e futurista.
“Lisbon Revisited (1923)”, assim se intitula o poema de Álvaro de campos que seguidamente analisado para tentar perceber quais as características desta fase do sujeito poético. Registe-se que é inevitável a comparação com os restantes heterônimos de Pessoa e, essencialmente, com o ortônimo.

Num misto de negatividade onde se encontra mais especificamente a recusa, revolta, loucura mas também a nostalgia (na parte final), o sujeito poético apresenta-nos “Lisbon Revisited (1923)” como parte extremamente clara de demonstração de solidão e desespero.
À excepção das duas últimas estrofes, o poema em questão é repleto de frustração e sentimento de mágoa. O sujeito poético começa por recusar tudo e todos à sua volta como se estas coisas e seres fossem a razão do seu estado de solidão e decadência. O poeta chega mesmo a resumir a sua recusa ao generalizar o seu desejo (“Não: Não quero nada.”), verso este que faz questão de dar ênfase repetindo a mesma ideia no verso logo a seguir (“Já disse que não quero nada.”), e mesmo no decorrer de todo o poema expressando-se sempre com revolta e angústia.
Recusa tudo que se mostre como conclusivo e alega que a única certeza é morrer (“Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer.”). Nesta parte podemos encontrar, além da solidão e tristeza características do ortônimo  uma semelhança a Ricardo Reis que focava diversas vezes a fugacidade da vida e o inevitável fim de todos, a morte.
O sujeito poético não quer saber de regras nem ideais de conduta ou moral a seguir. Quando na segunda fase o poeta aclamava com odes a evolução da ciência e o avanço num modernismo exageradamente futurista, na fase em questão (a terceira fase) rejeita a civilização moderna. Com toda esta “alergia” ao que observa, tenta encontrar razões de culpa ou de ilibação a estes factos questionando-se (“Que mal fiz eu aos deuses todos?”).
Com este poema, o sujeito poético recusa-se a encarar a verdade (“Se têm a verdade, guardem-na!”). Quer, sem dúvida, marcar pela diferença e distingue-se em atitudes de loucura através de palavras e pensamentos muito controversos que, são expressados com tanta convicção e firmeza que nos faz parecer que o poeta é quase consciente do seu estado de desespero e loucura (“Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram?”).
Ainda em estado de revolta, o poeta faz questão de enumerar situações banais que diz não querer aceitar. Situações essas que figuram como criticas à civilização moderna. O que ele quer é ser totalmente o contrário do que querem que ele seja (7ª estrofe, versos 1,2,3 e 4). Quer estar sozinho seja como e onde for pois visa a solidão perante a sociedade que avista naquele momento (7ª estrofe, versos 5,6 e 7). Não gosta de servir de “encosto” ou de “companhia”; parece rejeitar a proximidade vendo-se como alguém sozinho e ironicamente conformista com a situação (9ª estrofe).
Até à antepenúltima estrofe o sujeito poético apresenta-se com uma revolta que prime pelo seu tom irônico e provocador, nas duas ultimas estrofes o tom parece ser diferente uma vez que o sujeito poético começa a recordar a imagem que tinha de Lisboa no passado e a nostalgia de tudo de bom que parecia existir na “idade do ouro”, a sua infância. Novamente se pode observar outra característica em comum com o ortônimo  Na verdade, mesmo que o passado não tivesse sido perfeito, ambos encaram pior o presente e falam da infância como a única oportunidade de uma suposta felicidade (penúltima estrofe). O tempo que o sujeito poético recorda aparece como o pequeno pedaço de verdade que este tem como agradável. Por isso, ao revisitar Lisboa, o poeta sente mágoa naquilo que vê uma vez que nada se assemelha do que fora outrora. Desta Lisboa, o poeta já não reconhece nada, nem nada lhe desperta sentimento nem vontade de encarar este local como pedaço de vida presente (“Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.”).
Por fim, mas dando continuidade ao sentimento de revolta que esteve presente durante todo o poema, o poeta pede novamente solidão e, mesmo enquanto espera por esta, só anseia estar sozinho.
Neste momento, para o sujeito poético, Lisboa não é reconhecida por si, Lisboa não é mais lugar que lhe dá ou tira alguma coisa, não é nada que o faça sentir tudo ou até mesmo nada. O poeta tenta mostrar-se indiferente à civilização que observa e à Lisboa que lhe apresentam.
Analisando tudo isto, a minha opinião quase permite generalizar o sentimento que o sujeito poético transmite ao leitor. Assim, mesmo conscientes das variadíssimas interpretações que podem ser feitas, arriscamo-nos a dizer que o sentimento de saudade está claramente presente em “Lisbon Revisited”. No meu ponto de vista, o poeta relembra tudo o que viveu e não gosta nem aceita a realidade que vive, e como não quer manifestar tão diretamente o seu apego a uma civilização e uma Lisboa de outrora, prefere antes recusar tudo o que vê com uma revolta que só demonstra a perda, recusa, insatisfação e saudade.

(…)


Ao longo deste poema somos confrontados com algumas figuras de estilo como a ironia (presente em cada verso devido ao tom irônico e provocatório do sujeito poético), a adjetivação e a apóstrofe “oh céu azul…”, entre outras como perífrase “enquanto tarda o abismo e o silêncio quero estar sozinho…”, eufemismo, antítese “eterna verdade vazia e perfeita…”. Outro aspecto é os modos das frases. As frases imperativas estão presentes na maioria das estrofes de uma forma cruel e quase sempre injustificada. Também estão presentes as frases interrogativas e exclamativas que dão muita expressividade e emotividade ao poema.




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